O que pode estar, afinal, assim de tão errado num simples mapa do mundo? A resposta curta: tudo! Isto parece ser um completo exagero… Mas não é. Se ainda não está familiarizado com o problema das projecções dos mapas, tal como nos apresentam desde tenra idade, nas escolas, então vai ter um verdadeiro choque. De facto, desde que existem planisférios, existe este erro. Falamos dos erros de projecção. Este aparentemente “pequeno” erro tem sido responsável por nos mostrar o mundo de uma forma completamente deturpada, com todas as consequências que isso pode trazer, para populações inteiras de inúmeros países. Estou a exagerar? Não, e já explicarei porquê, mais à frente neste artigo. Mas antes vou explicar porque surgiu este problema.
Um pouco de geografia, pode ser?
Para começar, o que significa o termo projecção? Projecção é a forma como convertemos, como representamos o nosso globo (ou geoide, melhor dizendo) num plano. Planisfério, por sua vez, é o nome dado aos mapas do globo (geoide) terrestre em duas dimensões. A projecção de Mercator foi criada para facilitar a navegação, e porque quando Gerard Kramer, mais conhecido por Gerard Mercator, criou este tipo de mapa, nos Século XVI, não existia tecnologia nem conhecimentos para fazer melhor. O coitado do senhor Mercator não tinha culpa nenhuma do maus uso que se faz nos nossos dias do seu arcaico planisfério!
A obrigação de fazer melhor cabe a todos os que sabem do erro e não o corrigem. A cartografia, ou seja, a ciência de fazer e estudar mapas tem vindo a evoluir, e são inúmeros os mapas produzidos por diversos cartógrafos (e não só) que quiseram solucionar o problema de como apresentar a Terra, um corpo de forma quase esférica, num plano, uma vulgar folha de papel. Há dezenas de projecções, tal como poder ver neste artigo sobre diferentes projecções azimutais, em inglês.
Existem boas alternativas à projecção de Mercator, há mais de 100 anos! A projecção de Gall-Peters, por vezes também (injustamente) conhecida como projecção de Peters, foi uma projecção inicialmente proposta pelo escocês James Gall, no Século XIX, e foi redescoberta pelo realizador alemão Arno Peters, que a apresentou em 1974 (*). Outra boa proposta, é a Winkel Tripel, dada a conhecer ao mundo em 1921, pelo alemão Oswald Winkel.
Os tipos de projecções cartográficas
As projecções cartográficas podem ser de três tipos principais: cilíndrica, cónica ou azimutal. Vamos conhecer um pouco melhor as duas primeiras.
De um modo simplista, a projecção cilíndrica mostra-nos todos os meridianos em paralelos como quadrados perfeitos, num ângulo de 90º. A projecção de Mercator é deste tipo. A projecção de Mercator apresenta-nos uma deformação das áreas cada vez maior quanto maior a distância das formas apresentadas relativamente ao Equador. Por isso, as terras localizadas mais a Norte, na terra, parecem ser muito maiores do que realmente são, ao passo que as terras mais próximas do Equador parecem ser bastante menores, em proporção. Isto dá-nos os erros aberrantes da projecção de Mercator, que apresentarei mais à frente.
A projecção de Galle-Peters é uma projecção cilíndrica equivalente, ou seja, tenta conservar a proporcionalidade das áreas, independente da sua localização a respeito do Equador. Desta forma, é corrigida a deformação presente em qualquer mapa do mundo desenhado com a projecção de Mercator. Mesmo que não se considere Galle-Peters como uma solução perfeita, pelo menos de uma coisa temos a certeza absoluta: é melhor do que Mercator! A projecção azimutal pretende apresentar as áreas de forma mais rigorosa.
A projecção de Winkel Tripel é uma projecção pseudoazimutal, ou azimutal modificada: pretende encontrar um compromisso entre uma fiável apresentação das áreas e uma confortável visão em papel, nem sempre conseguida nas projecções azimutais. Ou seja, apresenta uma solução de compromisso entre rigor na apresentação do mapa do mundo e conforto e familiaridade par uma boa leitura do mapa. Por esse motivo, algumas instituições de prestígio escolheram a projecção de Winkel Tripel como a de referência das suas representações.
O mapa do mundo de Mercator inferioriza os povos do Sul: o problema da Gronelândia
Aqui está a questão política. O mapa do mundo feito por Mercator foi criado como ferramenta para a navegação. E deveria servir exclusivamente esse fim. Mas a verdade é que, apesar de existirem diversas opções bem melhores, é o de Mercator o mais usado, apesar de ser completamente errado para uso como mapa geo-político. Acontece que, ao que tudo indica, e aí vem a parte interessante da história, o uso deste mapa é deliberado. Há um propósito nisso. O mapa de Mercator apresenta a Europa e a América do Norte maiores do que realmente são, mostrando-os numa grandeza que não têm, enquanto apresenta os países de África, América do Sul e Sudoeste Asiático proporcionalmente diminuídos. Isto tem um importante efeito psicológico.
O mérito maior de Arno Peters foi de trazer para a ordem do dia, em 1973, o assunto da percepção desfasada da realidade dada pela projecção de Mercator. Peters chamou o mapa de Mercator de racista, por dar maior relevo aos países colonizadores, todos mais próximos do Polo Norte, reduzindo os países colonizados, todos mais próximos do Equador. Vários movimentos e organismos têm lutado pela mudança deste paradigma, reivindicando o fim do uso da projecção de Mercator.
Algumas curiosidades sobre o mapa do mundo de Mercator
No mapa de Mercator, o Alasca, território dos EUA, parece do tamanho do Brasil, quando na realidade, o Brasil tem 8 515 767,049km2, ou seja é quase seis vezes maior que o Alasca, que tem 1.518,800 km2.
A Gronelândia parece ser ligeiramente maior que África, se observada num mapa como o do google maps, por exemplo. Na realidade, a Gronelândia tem 2,166,086 km2, mas África tem 30.221.532 km2! África é 15 vezes maior! Olhando para um mapa comum, quem pode dizer isso?
Os países da Escandinávia parecem ser maiores que a Índia, quando na realidade, a Índia é três vezes maior que todos os países escandinavos juntos.
Madagáscar, com 587 041 km2, aparenta ser do mesmo tamanho da Grã-Bretanha, que, com os seus 243,610 km2, é mais de duas vezes menor.
Não obstante o facto de o Equador dividir o planeta a meio, na verdade a maioria das representações de mercator apresentam a linha do Equador a sensivelmente um terço do fundo do mapa.
As crianças aprendem, nas escolas, uma representação do mundo, deturpada, que acaba por ser interiorizada como sendo verdadeira.
Em conclusão
A projecção de Mercator tem 500 anos. Mas nós estamos no Século XXI, temos os meios, a tecnologia e, acima de tudo, o conhecimento de como verdadeiramente devemos apresentar o mundo, sem distorções, ou com as mínimas possíveis. Não é admissível que empresas como a google, por exemplo, desenvolvam um produto, o google Earth, apresentando o mundo desta forma deturpada, que qualquer geógrafo sabe estar errada. Não há qualquer dificuldade técnica em utilizar a projecção correcta, em vez da errada. Nem há custos acrescidos nisso. Nem falta de conhecimento. O que motivou o google, então, a difundir o google earth desta forma tão grosseiramente errada? Isto só é mais uma das múltiplas estranhezas características desta curiosa empresa, acabada de ser condenada pela justiça francesa pela fuga aos impostos, e que está a ser investigada pela União Europeia por suspeitas de abuso de posição dominante, mas isso é conversa para outro dia…
Li algures que ainda há geógrafos a pedir a alteração dos mapas nos livros de Geografia. Sinceramente, não sei como se está a processar a alteração nos países de língua portuguesa, se é que essa questão já se levantou nestes países, de todo. Gostaria de saber qual a situação nestes países, por isso peço a estudantes e a professores qual o ponto de situação actual nas escolas. Que mapas se apresentam nos livros de Geografia? Que visão do mundo é apresentada às crianças e jovens?
Transcrevo aqui um documento elaborado em 1989, por várias organizações geográficas norte-americanas, uma resolução pedindo a proibição de todos os mapas de coordenadas rectangulares, argumentando:
Considerando que, a terra é redonda, com um sistema de coordenadas composto inteiramente de círculos, e
Considerando que, mapas do mundo plano são mais úteis que os globos, mas o achatamento da superfície do globo necessariamente altera em larga medida a aparência dos recursos da terra e sistemas de coordenadas, e
Considerando que os mapas do mundo têm um efeito poderoso e duradouro sobre as impressões dos povos sobre as formas e tamanhos de terras e mares, sua disposição e a natureza do sistema de coordenadas, e
Considerando que, olhar frequentemente um mapa muito distorcido faz com que ele acabe por parecer acertado,
Portanto, exortamos vivamente todos os editores de livros e mapas, os meios de comunicação e o governo para deixar de utilizar os mapas do mundo retangular para propósitos gerais ou exposições artísticas. Esses mapas promovem concepções erradas, graves por distorcer severamente largas partes do mundo, mostrando a terra redonda como tendo bordas rectas e cantos, representando a maioria das distâncias e rotas incorretamente e retratando o sistema de coordenadas circular como um grade quadrado. O mapa do mundo rectangular mais amplamente divulgado é o Mercator (na verdade um diagrama de navegação planejado para cartas náuticas), mas outros mapas do mundo rectangulares propostos como substitutos do Mercator também mostram uma imagem distorcida da Terra esférica.
Notas
(*) – Surgiu uma polémica por Arno Peters ter apresentado como seu um mapa que era da autoria de James Gall, o que terá sido motivo apresentado por muitos cartógrafos para repudiar o trabalho e as reivindicações de Peters. Não sei qual a verdade sobre este assunto, mas o que é importante é que, independentemente do seu criador ou da possível desonestidade de Arno Peters, as suas reivindicações estavam correctas.
A obrigação de fazer melhor cabe a todos os que sabem do erro e não o corrigem. A cartografia, ou seja, a ciência de fazer e estudar mapas tem vindo a evoluir, e são inúmeros os mapas produzidos por diversos cartógrafos (e não só) que quiseram solucionar o problema de como apresentar a Terra, um corpo de forma quase esférica, num plano, uma vulgar folha de papel. Há dezenas de projecções, tal como poder ver neste artigo sobre diferentes projecções azimutais, em inglês.
Nota sobre o artigo
Este artigo foi inicialmente publicado neste site em 6 de Fevereiro de 2014, em duas partes. A 1 de Setembro de 2019 foi actualizado. Todo o conteúdo nas duas partes foi mantido em uma página, para uma leitura mais cómoda.